[Os Doze Trabalhos] O Quarto Trabalho: O Javali do Erimanto (Mito)

javalipor DiomedesRJ

Pouco depois do Terceiro Trabalho, o Arauto de Euristeu procurou novamente Hércules para uma nova missão: ele deveria trazer vivo e na presença do Rei um enorme javali, feroz e selvagem além do costumeiro para sua espécie, que tinha se estabelecido na região do Erimanto, novamente o levando para Arcádia.

Ciente desta vez que o Monte Erimanto também era dedicado a Diana, sabia que mesmo que o animal não fosse consagrado a ela, que deveria agir com cautela – a Deusa da Caça tinha sido aplacada no Trabalho anterior, mas ainda sim, não esqueceria da presença de Hércules em seus domínios. Logo, apesar de saber que suas armas não poderiam ser indiscriminadamente usadas, levou todas – inclusive algumas flechas embebidas no mortal veneno da Hidra de Lerna, e seguiu seus passos retornando para Arcádia.

Euristeu desta vez foi avisado por sua Senhora e Deusa, Juno, que além dela ter tomado providências para que o Filho de Júpiter saísse enfraquecido deste Trabalho, que ele finalmente enfrentaria um adversário que não podia ser derrotado…

Decidido desta vez a aproveitar mais do caminho, dado que ele não teve muito tempo para conhecer Arcádia no Trabalho anterior, Hércules decidiu por uma viagem num ritmo menos apressado. Já em terras arcadianas, o cheiro de suor de cavalo somado a uma canção chula em voz conhecida não lhe deixavam dúvidas: o acampamento um pouco mais a frente era de um velho amigo dele entre os Centauros, Folo.

Após comerem, contarem histórias e falarem do presente, Hércules pediu vinho ao anfitrião. Ele só tinha um barril consigo, presente do Deus Baco, dado sob promessa de que só seria aberto na presença de todos os Centauros, pois foi dado para toda a espécie. Não querendo deixar seu amigo insatisfeito, Folo abriu o tonel, e começaram a se fartar da iguaria, forte, bem temperado, verdadeiro presente divino.

Próximo do fim do dia, já há muito embriagados, Hércules e Folo notaram sons de cascos que vinham de… todas as partes, como se incontáveis cavalos viessem para lá. Mesmo trôpego, o Filho de Júpiter tomou suas armas e aguardou.

Atraídos pelo odor mágico do vinho, todos os Centauros da Grécia vieram até o acampamento de Folo, inclusive Quiron, Ancião dos Centauros, professor de Hércules em sua adolescência e seu primo em Segundo Grau.

O pequeno exército imediatamente admoestou Hércules pela audácia de beber daquilo que não lhe pertencia. Enquanto Folo assumia a responsabilidade diante de seus irmãos e Quiron ordenava calma aos jovens, um dos Centauros, impetuoso como toda sua espécie sempre foi, foi até o Filho de Júpiter e lhe tomou a taça das mãos, que ainda continha um pouco do vinho sagrado.

Foi o suficiente para ser abatido com três golpes certeiros da clava de Hércules. Os centauros avançaram contra o semideus. O combate agora era inevitável.

Mesmo estando em centenas, eles não tiveram chances contra Hércules. Com a Couraça de Neméia a lhe proteger, sua força divina ampliada por sua cólera, e sua mente entorpecida pelo vinho, cega e surda aos apelos de Folo e Quiron, o Filho de Júpiter aniquilou quase todos os presentes. Quando eles começaram a fugir, as setas envenenadas continuaram a ceifar dolorosamente as suas vidas. Apenas uns poucos que se esconderam ou conseguiram desaparecer das vistas de Hércules foram poupados do holocausto.

Quando sua mente deixou a Ira Vermelha que lhe tomou, viu apenas seu antigo Mestre Quiron, urrando de angústia diante do corpo de Folo e de quase todos os seus irmãos de raça…

Hércules não teve coragem de nada dizer a Quiron. Ele apenas ficou lá enquanto seu Mestre enterrava seus irmãos. Ainda sim, uma última tragédia ocorreu…

Enquanto limpava os corpos dos Centauros, Quiron feriu a mão em uma das flechas… infelizmente uma das embebidas no mortal veneno da Hidra de Lerna. Contudo, Quiron, por ser filho de uma divindade Primordial, era imortal; como o veneno não tinha cura e causava grande sofrimento antes da morte, Quiron estava então condenado a passar sua imortalidade sujeito a eterna e intensa dor…

Antes de partir, em passos lentos, o rosto visivelmente em sofrimento, Quiron disse a seu antigo discípulo: “Por duas vezes, você destruiu aquilo que amava. Aprenda, de uma vez por todas, o motivo, e não erre mais.”

Hércules deixou aquele local de desgraça e seguiu em frente, pois o Quarto Trabalho tinha que ser cumprido.

Mas em algum lugar no Olimpo, Juno sorria satisfeita… pois agora ela tinha certeza que Hércules iria fracassar…

Chegando enfim ao sopé do Monte Erimanto, Hércules procurou as vilas próximas e só viu devastação, as plantações arrasadas e as manchas de sangue, sinais de quem tentou confrontar a vontade cega, a fome e a fúria do javali. Felizmente para Hércules, desta vez, sua presa era lenta e deixava rastro bem visível.

Nas profundezas da floresta, Hércules enfim alcançou sua presa. Quase tão alto quanto um cavalo, quase tão forte quanto arredondado, olhos injetados de sangue contra seu pelo marrom terroso. Hércules contou que ele se comportaria como um javali típico, fugindo quando confrontado, e correu na direção dele. Diferente do que o semideus esperava, o javali grunhiu furioso e correu na direção de Hércules, cabeça abaixada, presas apontadas para ele.

Mesmo surpreendido, Hércules reagiu de acordo e desviou para o lado no último instante, segurando-o com seus poderosos braços, os mesmos que haviam estrangulado o Leão de Neméia, esperando assim, submeter o animal até que ele desistisse de lutar.

Para nova surpresa do Filho de Júpiter, ao abraçar o Javali do Erimanto, a fera grunhiu e se debateu com uma força descomunal… seus pelos oleosos deslizando sobre os braços do semideus… até que ele se libertou, e escapou grunhindo na mata.

Hércules gritou de frustração e se preparou para correr novamente atrás do animal… mas esperou… que som era este que ouvia? Patas de cavalo? Seria seu Mestre Quiron que havia o seguido? Não, era só sua imaginação… mas isto o fez pensar.

O javali não podia ser morto e não poderia ser capturado com força bruta, por mais estrategicamente que fosse usada… Duas vezes… força… cólera… natureza…

Sim. Hércules tinha um plano. Iria ser tedioso. Iria ser demorado. Mas era o único jeito.

Retornando até as plantações destruídas pelo javali, ele procurou por brotos de vegetais que não tivessem sido destruídos ainda. Os levou cuidadosamente até a mata e os replantou no solo. Armou uma sólida arapuca que caísse sobre a fera assim que ela se aproximasse deles. Reforçou seu acampamento. E esperou.

Sabia o semideus que, sem mais nenhuma plantação por perto, o animal, por sua fome, fatalmente seria forçado a se aproximar dos brotos bem cuidados e cairia na armadilha, desde que Hércules fosse paciente, e se mantivesse calmo e sem movimentos bruscos quando chegasse a hora. Só restava a ele ser paciente.

E assim, Hércules esperou. E esperou. E esperou. Dias se fizeram semanas e se fizeram meses.

No auge de um dia distante, sons de madeiras estalando e fuçadas pesadas no solo indicavam que enfim, o javali tinha achado a pista até ali. Imóvel Hércules se manteve.

Ao chegar na clareira, o Javali do Erimanto grunhiu ao ver o semideus. Ameaçou atacá-lo. Mas sua fome era maior, e lentamente ele caminhou até os vegetais agora crescidos, mais perto, mais perto… até que com um estalo alto, a gaiola de pedras e madeira caiu sobre a presa, finalmente capturada.

Mas Hércules sabia que seu Trabalho não estava terminado.

O animal não podia ser simplesmente amarrado – jamais se submeteria, assim como não se submeteu ao poderoso abraço do Filho de Júpiter. Não poderia também ficar muito tempo engaiolado: ou ele destruiria sua prisão, ou morreria tentando. Ele teria que ir até Euristeu de vontade própria. E isto só seria possível se ele fosse domado.

Enquanto o javali investia ferozmente contra as grades de sua prisão, Hércules colheu todos os vegetais do local que o animal procurava, e colocou diante de si apenas o suficiente para saciar a fome do animal… e puxou a corda que erguia a prisão. A fera ameaçou investir, cercou o semideus, passou para suas costas, se aproximando, inquieta entre comer e atacá-lo… até que em momentos que pareceram horas, estava diante de Hércules, ao alcance de sua mão, enfim comendo o que tanto procurava. Ainda sim, Hércules não se moveu. Ao terminar de se alimentar, fugiu velozmente.

O Filho de Júpiter não se perturbou com isto. Foi até os aldeões que ainda teimavam em viver em Erimanto e pediu a eles que pegassem pequena quantidade de vegetais e tubérculos de vilas próximas e entregassem diretamente a ele – naquele dia mesmo. Também disse Hércules que ficassem em suas vilas sem nada produzir até que ele mesmo viesse até eles. Assim todos obedeceram.

E mais semanas se passaram, o javali selvagem não tendo outra escolha a não ser se alimentar da forma que Hércules desejava, primeiro em frente a si mesmo, depois em sua mão, cada vez mais próximos em distância e em confiança. Algumas vezes eles lutaram, algumas vezes viveram em paz, e assim passou-se o tempo.

Muito tempo havia se passado desde que Hércules havia desaparecido na floresta. A maior vila de Erimanto já sussurava que o Filho de Júpiter estava morto, a vítima mais ilustre do feroz javali. Enquanto os adultos conversavam, ouviram uma criança rir e apontar para um monte. Os adultos olharam, todos viram e riram de júbilo e alívio.

Hércules e o Javali do Erimanto estavam descendo o monte, não apenas juntos, mas Hércules, para demonstrar que o animal estava totalmente domado, descia a montanha segurando as patas traseiras da fera enquanto ela caminhava apenas com as dianteiras, como se fosse um “carrinho de mão”!

O Rei Euristeu estava diante de sua corte especialmente radiante naquele dia. Há meses não tinha qualquer notícia de Hércules, e já comemorava o fracasso de seu odiado primo… mas ainda sim tinha seu grande jarro de bronze ao seu lado, só para garantir.

Enquanto uma serva lhe trazia uvas, seu Arauto entrava na corte apressado:

– Majestade! Majestade! Hércules retornou! Hércules está aqui! – gritava o servo, correndo até o trono.

– Aquiete-se, Arauto, o que está me dizendo??? – disse Euristeu levantando-se do trono.

O Arauto apenas apontou para a entrada da Sala do Trono, e o Rei viu por si mesmo.

Em meio a homens se afastando ou correndo, e mulheres olhando admiradas, o Filho de Júpiter caminhava com o Javali do Erimanto carregado sobre seu ombro, como se carregasse um tonel de vinho, a fera agora domada apenas fuçando pesadamente uma vez ou outra, curioso com o ambiente novo.

Euristeu se lançou dentro do jarro de bronze, pálido de medo, e mesmo dentro do artefato, podia-se ouvir sua voz:

– Hércules! Tire este animal daqui! Tire este monstro do meu palácio!

– Meu Rei e Senhor… estou aqui apenas cumprindo sua ordem! Você pediu que o Javali fosse trazido na sua presença, e aqui ele está! – disse Hércules, erguendo o javali e colocando a cabeça dele perto da boca do jarro, o animal agora fuçando e grunhindo com mais vigor.

– TIRE-O DAQUI! SEU TRABALHO ESTÁ CUMPRIDO! AGORA TIRE-O DAQUI JÁ!!! – gritou Euristeu cheio de pavor.

Hércules desceu o Javali do Erimanto ao chão, e caminhou para fora da Sala do Trono, o animal o seguindo, e dizendo a ele:

– Venha, meu amigo. A Grécia é grande. Encontrarei um bom lugar para você viver, com comida e abrigo, onde você viverá em paz. Lá você será bem cuidado, porque agora, você e eu somos Um.

O Filho de Júpiter ouviu mais uma vez patas de cavalo ao longe… mas desta vez ele sabia que elas caminhavam com aprovação.

1 comentário

    • Eduardo Martins em 02/05/2014 às 23:37
    • Responder

    Muito Legas esses posts, adoro mitologia, sempre quis saber sobre os doze trabalhos de Hércules mas nunca achei um livro que contasse com precisão e clareza sobre os mesmos. Valeu Diomedes.

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