Reflexões de George Orwell – porquê só os jovens morrem?

Estava dando uma lida nos blogs estrangeiros, e vi um cara postando um trechinho de um artigo escrito pelo grande George Orwell em 1944, num jornal inglês. Ele faz um discurso contra a hipocrisia da “guerra humanizada”, onde civis eram salvos da morte em troca do sacrifício de milhões de soldados.  É notável Orwell escrever tal artigo durante a guerra e numa época em que homens morrerem por mulheres e crianças não era”mais que a obrigação” masculina. Não é a toa que era um gênio!

As I Please“, por George Orwell

Tribune, 19 e maio de 1944

O panfleto da Sra. Vera Brittain, “Semente do Caos”, é um ataque aos bombardeios indiscriminados. “Devido aos ataqueas da RAF, (NT: Força Áerea Real, em inglês)”, ela diz, “milhares de pessoas inocentes e indefesas na Alemanha, Itália e em cidades ocupadas pelos alemães estão sendo alvo de formas agonizantes de morte e ferimentos comparáveis às piores torturas da Idade Média.”  Vários oponentes conhecidos dos bombardeios, como o General Franco e o Major General Fuller, apoiam isto. A sra. Brittain não está, é claro, vendo as coisas pelo lado pacifista. Ela está desejosa e ansiosa pelo fim da guerra, é claro. Ela simplesmente quer que fiquemos nos métodos “legítimos” da guerra e abandonemos o bombardeio de civis, no qual ela teme que suje nossa reputação aos olhos da posteridade. Seu panfleto foi emitido pelo Comitê de Restrição de Bombardeios, que publicou outros títulos similares.

Agora, ninguém normal nutre algo por bombardeios ou qualquer outra operação de guerra aém do desgosto. Por outro lado, nenhuma pessoa liga para a opinião da posteridade. E há algo muito desagradável em aceitar a guerra como um instrumento e ao mesmo tempo querer não ter responsabilidade por seus resultados mais bárbaros. O pacifismo é uma posição sustentável, desde que você esteja pronto para as consequências. Mas toda esta conversa de “limitar” ou “humanizar” a guerra é pura farsa, baseado no fato que a pessoa comum nunca se dá ao trabalho de analisar as palavras de ordem.

E as palavras de ordem usadas nesta conexão são “matar civis”, “massacre de mulheres e crianças”, e a “destruição de nosso patrimônio cultural”.  Isto é assumir tacitamente que bombardeios aéreos causam mais desses tipos de danos do que os combates em terra.

Quando você olha mais de perto, a primeira questão que surge é: Porque é pior matar civis do que soldados? Claro que se não se deve matar crianças se tivermos alguma forma de evitar isto, mas é só em propagandas que cada bomba acaba caindo em escolas e orfanatos.  Uma bomba mata diversos tipos de pessoas, mas não este tipo em particular, já que crianças e mães geralmente são evacuadas primeiro, e parte dos jovens estão no exército. Provavelmente grande parte das vítimas de um bombardeio serão de meia idade (as bombas alemãs mataram por volta de 6 a 7 mil crianças no país. Isto, acredito, é menos que o número de mortos nas estradas no mesmo período). Por outro lado, a guerra “normal” ou legítima” vitima e destroça somente os mais bravos e saudáveis homens jovens da população. Toda a vez que um submarino alemão afunda por volta de 50 homens jovens em sua melhor saúde física e mental são mortos. E são as mesmas pessoas que protestam contra os “bombardeios civis” que comemoram com satisfação que “estamos vencendo a Batalha do Atlântico”. Só deus sabe quantos morreram e ainda vão morrer na Alemanha, mas você pode ter certeza que nunca alcançará o número do massacre que está acontecendo no front russo.

A guerra não é evitável no estágio da história em que vivemos, e como isto iria acontecer eu não vejo problemas em deixar outros serem mortos ao invés de nossos rapazes. Escrevi em 1937: “as vezes me conforta pensar que o avião está alterando as condições da guerra. Talvez quando a próxima grande guerra vir veremos algo sem precedentes na história, um patriota exaltado alvejado por balas.” Ainda não vimos isto (e talvez isto seja uma contradição em termos), mas de qualquer forma o sofrimento desta guerra está sendo compartilhado de forma mais uniforme que a a da guerra anterior.  A imunidade dos civis, uma das coisas que fazem a guerra possível, foi abalada. Ao contrário da sra. Brittain, eu não lamento isto. Não consigo ver nada de “humano” em ver só os jovens morrendo e considerar “bárbaro” ver os mais idosos morrendo também.

Quanto aos acordos internacionais para ‘limitar’ a guerra, eles nunca são mantidos quando vale a pena quebrá-los. Antes da última grande guerra acontecer, todas as nações concordavam em não usar o gás mostarda, mas todos acabaram usando. Desta vez ele só não foi usado somente porque o gás é inefetivo numa guerra de movimento, enquanto seu uso contra civis provocariam retaliações da mesma forma. Contra inimigos que não podem contra atacar, como os Abissínios, o gás foi usado o quanto antes. A guerra em sua natureza é bárbara, e é melhor a admitir assim. Se começarmos a nos ver como selvagens que somos, algumas melhoras são possíveis, ou pelo menos pensáveis…

As I Please“, por George Orwell

Tribune, 14 de julho de 1944

Eu recebi algumas cartas, algumas bem violentas, me atacando sobre os meus comentários sobre o panfleto anti bombardeios que a sra. Vera Brittain fez. Há dois pontos que eu gostaria de comentar.

Primeiro é a acusação, que está ficando comum, que nós começamos com isto, ou seja, a Inglaterra foi o primeiro país a praticar o bombardeio sistemático de civis. Como alguém pode fazer tal afirmação, conhecendo a história recente, é algo que me foge a compreensão. O primeiro ato desta guerra – algumas horas, se me lembro bem, logo após a declaração de guerra foi dada – foi os alemães bombardeando Varsóvia. Os alemães bombardearam a cidade de forma tão intensiva que, de acordo com os poloneses, a certo momento havia mais de 700 incêndios acontecendo simultâneamente. Eles fizeram um filme sobre a destruição de Varsóvia, que foi intitulado “Batismo de Fogo” e foi mandado para todo o mundo com o objetivo de aterrorizar os países neutros.

Anos antes tivemos a Legião Condor, enviada à Espanha por Hitler, que bombardeouuma cidade espanhola atrás da outra. Os “bombardeios silenciosos” em Barcelona mataram milhares de pessoas em apenas alguns dias.  E ainda antes disto tivemos os italianos que bombardearam os indefesos abissínios e ainda se vangloriavam disto. Bruno Mussolini escrevia artigos em jornais em que descrevia como as vítimas dos bombardeios “desabrochavam como rosas” e como isto, segundo ele, era “muito divertido”. E os japoneses, desde 1931 e ativamente depois de 1937, bombardeiam as superlotadas cidades chinesas com pouca estrutura, muito menos meios de se defender de tais ataques.

Eu não estou afirmando que dois males justificam outro mal, ou que os ingleses são “bonzinhos”. Em inúmeras guerras de baixa intensidade desde a década de 1920 em diante a RAF jogou bombas em afegãos, indianos e árabes que mal tinham capacidade de contra atacar. Mas é uma inverdade dizer que bombardeios em áreas populosas, como objetivo de causar o pânico,  são invenções britânicas Foram os países fascistas que começaram com isto, e desde que a guerra área era usada em favor deles eles tinham este objetivo bem claro.

Outra coisa que precisa ser dita é a ladainha das “mulheres e crianças”. Eu mostrei isto antes, mas preciso reforçar, que provavelmente é um pouco melhor dividir a carga das vítimas entre todas os tipos de pessoas do que jogar a carga toda em cima dos jovens. Se o que os alemães publicam é verdade e realmente matamos por volta de 1 milhão e 200 mil civis em nossos bombardeios, tal massacre provavelmente afetou menos os alemães que as percas no front russo ou na África ou na Itália.

Qualquer nação em guerra faz o melhor para proteger suas crianças, e o número de crianças mortas em ataques provavelmente não corresponde a sua percentagem da população em geral. Mulheres não podem ser protegidas da mesma forma, mas a choradeira contra a morte de mulheres, se você aceita a morte, é puro sentimentalismo. Porque é pior matar uma mulher do que um homem? O argumento geralmente usado é que matando mulheres você está matando as que podem dar continuidade à raça humana, enquanto os homens não são tão primordiais assim para este papel. Mas esta falácia se baseia na noção que pessoas podem ser criadas como animais. A idéia por trás disto é que um homem é capaz de fertilizar um grande número de mulheres,  como se ele fosse um macho reprodutor que insemina milhares de fêmeas, então a perca de homens não é tão importante assim. Mas seres humanos, entretanto, não são gado. Quando a matança gerada por uma guerra faz com que muitas mulheres sobrevivam, a enorme maioria delas acaba não tendo filhos. As vidas masculinas são tão importantes, biologicamente, quanto as femininas.

Na última guera o Império Britânico perdeu por volta de 1 milhão de homens, dos quais três quartos deles eram residentes das ilhas britânicas. A maioria deles tinham menos de 30 anos. Se todos estes jovens homens tivessem apenas um filho, hoje teríamos 750,000 pessoas a mais vivendo neste país com mais de 20 anos. A França, que tiveram perdas ainda mais pesadas, nunca conseguiu se recuperar do massacre que foi a última guerra, e é de se duvidar que a Inglaterra conseguiu se recuperar totalmente. Ainda não podemos calcular as casualidades da guerra atual, mas a última guerra matou por volta de 10 a 20 milhões de jovens homens. Como as coisas estão indo, com esta guerra tendo bombas voadoras, foguetes e outras armas de longo alcance que matará tantos jovens quanto velhos, saudáveis e doentes, homens e mulheres de forma imparcial, provavelmente destruiremos a Europa um pouco menos do que da última vez.

Contrário ao que alguns dos meus críticos acham, eu não tenho a menor simpatia por ataques aéreos, tanto os nossos quanto os dos inimigos. Como tantas outras pessoas do nosso país, estou ficando farto de bombas. Mas eu sou contra esta hipocrisia de aceitar a força como instrumento enquanto reclamam de um ou outro instrumento de guerra em particular, ou denunciar a a guerra enquanto se preserva o mesmo tipo de sociedade que faz com que a guerra seja inevitável…

fonte: http://www.orwelltoday.com/orwellwaryoungwhy.shtml

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3 comentários

    • Antônio Siqueira em 05/21/2012 às 14:56
    • Responder

    Sim, concordo que hoje a estratégia de enviar só homens à guerra não represente mais uma vantagem evolutiva para um grupo, principalmente para nós, ocidentais.

    Mas nossa vida hoje é bem diferente do que foi. Continuando com Pinker, ele cita que em algumas tribos estudadas, no período em que foram estudadas, até 60% doas homens morriam em guerras e que em geral eram os homens de mais status na tribo que tinham mais esposas. Ele cita chefes tendo 3 ou 4 esposas. Ou seja, o camarada não ia ter 200 filhos com apenas 4 esposas, mas certamente haveria mais crianças comparando com a situação em que as mulheres também morrem na guerra.

    Suas colocações são interessantes, eu até gostaria de responde-las mas falta espaço aqui. E falta tempo também.

    Mas você também tem razão no seguinte ponto: quando muitos homens morrem na guerra, a situação da tribo se deteriora. A tendência é essa. Mesmo assim, no geral, a sobrevivência de uma tribo torna-se muito mais provável quando só os homens vão à guerra.

    Aliás, pelo que li, até lobos adotam parcialmente a prática do “mulheres e crianças primeiro”, porque quando prenhes, as lobas ficam sempre no centro da matilha, evitando conflitos com outras matilhas.

    • Antonio Siqueira em 05/21/2012 às 12:07
    • Responder

    Muito embora eu concorde que matar homens é eticamente tão condenável quanto matar mulheres, o fato é que George Orwell não era biólogo. A maioria desses, os biólogos, concorda que nós seres humanos adotamos práticas polígamas durante a nossa evolução. Portanto, nas tribos em que viviam, provavelmente na maioria delas, um número pequeno de homens podia engravidar muitas mulheres.

    A prática do “mulheres e crianças primeiro” nos acompanha desde o paleolítico. Sabemos disso por vários meios. Por marcas no esqueleto encontrado podemos deduzir a causa da morte do indivíduo. E quase sempre, grupos de pessoas assassinadas são constituídos por homens. As mulheres eram poupadas e incorporadas a tribo vencedora.
    Também, como já comentei em outros fóruns, um bom modelo de como era a vida no paleolítico são as tribos indígenas. Como relata Steven Pinker no seu “Tabula Rasa”, a maioria delas aceitava a poligamia.
    O motivo é muito simples: tribos que em que os mortos em guerras são predominantemente homens, crescem mais e tem mais chances de sobreviver.

    1. Sim, mas isso valia quando não havia muitos humanos por aí. Mas mesmo no passado há de se pensar que tal pensamento poderia levar à extinção da tribo. Para mim tal argumento é um modelo falho usado para justificar que homens morram. Algo pra parecer mais “moralmente aceitável”.

      Pois vejamos. Além do fato citado pelo Orwell, onde grande parte das mulheres que “sobraram” acabaram por não ter filhos, que atrapalhou sobremaneira no desenvolvimentos de muitos paises europeus (a Rússia msm ainda sofre uma falta crônica de homens. Tanto pelo efeito das guerras passadas tanto pela total desvalorização do jovem russo hj, onde mts morrem jovens devido drogas e outros comportamentos de risco) temos q levar em conta outro fator: legal, um cara só pode “inseminar” umas 200, 300 mulheres. Mas quem é q vai sustentar esse mundaréu de crianças?

      O governo? Como faria isso sem quebrar? Afinal, o grande pagador de impostos é o homem comum, q grande parte, neste cenário hipotético, estariam mortos. Mesmo q esses “reprodutores” trabalhem em dobro, é humanamente impossível q um cara só dê conta de sustentar 200 crianças. Os poucos coitados q sobreviveriam a uma catástrofe ainda teriam q trabalhar como escravos para cuidar de filhos q nem deles seriam.

      Mesmo em tribos isso seria mt perigoso. Com boa parte da população masculina morta, sobrasse ali uns 10, 20 “reprodutores”. blz, esses caras comeriam as mulheres da tribo inteira e iam fazendo filhos. Mas até essa nova geração crescer e poder ter capacidade de se defender e defender sua tribo, quem ia segurar a bronca se uma tribo rival atacasse? Mulheres? Pivetes? Um punhado de reprodutores? E no mais, quem iria mover a agricultura, pecuária, etc desta tribo para prover comida e recursos a eles? A longo prazo estariam mortos.

      Pra uma sociedade poder prosperar, ela tem q entender q o homem é tão importante biologicamente qto a mulher. Ou isso ou são engolidos por bárbaros numerosos, como já acontece na Europa.

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